O Outono já ia adiantado. Terminada a faina das vindimas, preparavam-se os terrenos para as sementeiras. Porém, não fora o vento cieiro que se fazia sentir, a par das primeiras geadas que começavam a cair ao fim da tarde, e pensar-se-ia que ainda se estava no Verão.

Adiantado em idade, ia também o pobre velho que, sentado num poial, resguardado pelo recanto da parede, aquecia ao sol o alquebrado corpo, mirrado por longos anos de trabalho. Parecia adormecido, mas o pestanejar dos olhos, na vã tentativa de suster uma lágrima rebelde, que lhe rolava pelas faces, seguindo o sulco das rugas marcadas pela idade, acompanhado de um profundo suspiro que, de vez em quando, lhe fazia mexer a “arca do peito“, mostrava o contrário.

Com a aproximação do fim da tarde, e os efeitos da geada que começava a cair, o velho sentiu um arrepio. Ergueu os olhos, olhando demoradamente à volta. Era uma triste despedida do lugar onde passara toda a vida. Sabia que, ao outro dia, tal como combinara com o filho mais velho, se iria cumprir o antigo ritual.

Vinha de longa data o costume de, os filhos mais velhos, conduzirem os pais, já em idade avançada, até ao “Poio da Caleira” e, embrulhando-os numa manta, empurrá-los pelo íngreme penhasco. Também ele cumpria aquela tradição com o seu velho pai, mas só agora, ao ver-se perante essa situação se apercebeu da barbaridade desse ato.

Manhã cedo, dois homens seguiam silenciosamente em direção às arribas. O mais novo, cabisbaixo, levava pela rédea o jumento onde ia montado um velho ancião. Por alturas das “Pedras Altas“, este, virou-se e olhou tristemente para a povoação que ficara para trás, despedindo-se da aldeia e de toda aquela região onde, durante tantos anos, mourejou.

Chegaram finalmente às Caleiras. Sem uma palavra, o velho desmontou e acompanhou o filho até ao alto “picão“. Espreitando para a íngreme e alta ribanceira, o ancião estremeceu ao ver, lá no fundo, as grossas lajes que esperavam o seu dorido e magro corpo.

Quando o filho se preparava para o cobrir com a manta e empurrá-lo pela ribanceira abaixo, virou-se para ele e, olhando-o fixamente nos olhos, disse-lhe:

– Olha, meu filho, é melhor cortares metade desta manta, que é grande. Assim quando chegar a vez do teu filho te trazer a este lugar, já tem onde te embrulhar.

No céu azul, quais sentinelas negras da morte, esvoaçavam alguns corvos, esperando ansiosos o festim que adivinhavam.

Comovido com as palavras do pai, o homem baixou a cabeça e meditou por uns instantes, antevendo, certamente, o que um dia o futuro lhe reservaria. Então, passando um braço por cima dos ombros do pai, conduziu-o com ternura para junto do burrico.

Não foram necessárias quaisquer palavras para o ancião adivinhar o que o filho sentia.

Calmamente, em silêncio, retomaram o áspero caminho em direção à aldeia. O sorriso que aflorava os seus rostos espelhava o sentimento que lhes ia na alma, pela coragem de terem acabado com a bárbara tradição. No ar, qual hino de louvor, entoava o chilrear da passarada que, em bando, voava de figueira em figueira debicando os apetitosos figos.