Decorria o ano de 1810. O Verão mostrava-se promissor nas colheitas que se avizinhavam. Porém, uma triste notícia viria assombrar a esperança que raiava no coração dos lavradores: os franceses, comandados pelo general Massena, tinham invadido Portugal pela terceira vez.
De Vilar Formoso dirigiram-se para Almeida, atacando a praça-forte. Algumas patrulhas inimigas percorriam as aldeias da região, pilhando todo o género de alimentos que encontravam.
Mata de Lobos, com dura e trágica experiência do horror das guerras, guardava má memória das vicissitudes que sofrem as populações apanhadas pelas hostes em luta.
Os rumores da batalha que se travava bem perto, já tinham chegado à aldeia. A população mostrava-se apreensiva e indecisa, entre o ficar e aguardar pelos acontecimentos, ou fugir para as arribas, levando o que pudessem resguardar da cobiça do inimigo.
A noite caiu sobre a povoação, abafadiça, negra e agoirenta. Os corações em sobressalto e o uivar inquietante dos cães não permitiam que as pessoas dormissem descansadas.
Numa pequena casa, um pai, viúvo, deitado na cama, de olhos abertos, fixos na espessa escuridão, pensava demoradamente na situação que tinha pela frente e no futuro das três filhas casadoiras, que eram toda a alegria da sua vida. A esposa morrera há alguns anos, e ele cuidara com esmero e carinho redobrado aquelas meninas.
A recordação do que os avós tinham contado do que acontecera na Mata há quase século e meio, quando os espanhóis tinham destruído e saqueado a aldeia, no período da Guerra da Restauração, apertava-lhe o coração como se fora uma mão de ferro. Sabia as atrocidades que a soldadesca costumava praticar nestas ocasiões. Que fazer para salvar as suas meninas de tais barbaridades?
Uma ténue claridade, que entrava pela frincha da porta, anunciou o romper da aurora. Os galos, indiferentes à apreensão que pairava sobre a povoação, cantavam a anunciar o nascer de um novo dia, que, afinal ninguém sabia como se iria desenrolar, mas todos adivinhavam que nada de bom se passaria!
De repente, o semblante do angustioso pai, cansado por uma noite de vigília e de medo, suavizou-se um pouco. Acorrera-lhe ao pensamento que, na zona das arribas, ele tão bem conhecia, pois aí se deslocava frequentemente a tratar das searas e das oliveiras, estaria a salvação da honra das meninas.
Se saísse já, teria tempo de levar as filhas até uma gruta, na zona dos altos picões, onde as esconderia até o perigo passar. Dia sim, dia não levar-lhes-ia de comer, para a sua falta não ser notada na aldeia. O pessoal pensaria que ele ia visitar as propriedades.
Vestiu-se num ápice e saiu rapidamente do quarto, indo acordar as filhas, pondo-as a par da situação e do plano que tinha engendrado. Pouco tempo depois, já iam a caminho das arribas. O macho levava o alforge carregado de comida e alguma roupa de agasalho, apesar do tempo quente. As pobres raparigas estugavam o passo para acompanharem o andar do pai. Tropeçando frequentemente no árduo caminho que tinham de percorrer.
O tempo ia passando. O Sol elevava-se no horizonte, dando cor e vida à natureza. À volta, olivais e amendoeiras misturavam-se com figueiras, searas douradas, giestas e flores silvestres. Só o coração do pobre pai ia negro e apertado por maus presságios.
O “Cabeço de Domingos Mouro”, com o cerrado pinhal, já tinha ficado para trás. Lá ao fundo, qual cobra prateada pelos raios solares, serpenteava o rio Águeda por entre os meandros do apertado vale.
Chegaram finalmente ao local escolhido pelo pai, enquanto descarregava o animal, as raparigas, exaustas, sentaram-se numa pedra. Olharam para o alto. Lá em cima, duas abetardas voavam vigilantes no céu, que ia perdendo o belo azul, ofuscado por algumas nuvens que corriam velozes, empurradas pelo vento.
Apreensivas, admiraram com receio o paredão enorme que tiveram de descer e de que só nesse instante se apercebiam do declive. No outro lado do rio, a mesma paisagem austera, de pedras e vegetação. Nada mais!…
Como que impelidas por uma mola acionada pelo medo, levantaram-se e aproximaram-se do pai que, de joelhos sobre uma abertura na base de um alto rochedo, aí metia as roupas e comida que trouxera de casa. Terminada a tarefa, levantou-se, e indicou-lhe o buraco, dizendo-lhes para entrarem. Só de gatas o puderam fazer, pois a gruta era pequena.
Aconchegando-se, o pai disfarçou a entrada com uns arbustos, oferecendo-lhes um abrigo perfeito. Também seria por pouco tempo, pensava ele. Valia a pena o sacrifício.
Nesse instante, ouviram-se tiros ao longe. Apressadamente, pegou no animal pelas rédeas, despediu-se das filhas e, recomendando-lhes mais uma vez que dali não saíssem por motivo algum, começou a subir as arribas em direção à Mata.
Por alturas das “Malheiras“, junto ao gado que aí estava recolhido, viu um soldado francês. Apercebendo-se que não poderia passar adiante sem ser descoberto, atou o macho a um zimbro e aproximando-se cautelosamente, conseguiu surpreendê-lo, matando-o.
Os outros elementos da pequena patrulha francesa, que andavam por ali perto a arrebanhar alguns animais que tinham fugido da cerca, estranhando a demora do companheiro, foram à sua procura. Encontraram o lavrador que se preparava para montar no macho e, estranhando-lhe o ar assustado, levaram-no com eles. Alguns passos andados depararam com o corpo inanimado do colega. Suspeitando o que se passara, mataram o lavrador.
Alguns dias se passaram. As filhas escondidas em tão inóspito lugar e receosas do que lhes pudesse acontecer, tal fora o medo que o pai lhes incutira, esperavam ansiosamente pelo pai, que nunca mais chegaria. Os alimentos que tinham levado consigo chegavam ao fim. A fome e o medo, em pouco tempo tomaram conta das jovens abandonadas. Uma após outra expiraram naquele lugar ermo, longe do povoado, mantendo até final a esperança de verem chegar o pai a cada momento.